(Cecília Meireles)
Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que
parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos
magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem
personagens de Lope de Vega.
Às vezes um galo canta. Às vezes um
avião passa. Tudo está certo, no seu
lugar, cumprindo o seu destino. E eu me
sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas
felicidades certas, que estão diante de
cada janela, uns dizem que essas coisas
não existem, outros que só existem
diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a
olhar, para poder vê-las assim.
ooOoo
Cecília Meireles , como qualquer pessoa , queria ser - e foi - feliz . Sua infância foi marcada pela dor e solidão, pois perdeu a mãe com apenas três anos de idade e não chegou a conhecer o pai , que morreu antes do seu nascimento . Foi criada pela avó materna e começou a escrever suas primeiras poesias por volta dos nove anos de idade .
Teve uma experiência traumática na sua vida , o suicídio do primeiro marido. Mas superou a perda persistindo na vontade de ser feliz , encontrando estabilidade emocional e afetiva ao lado do segundo marido .
Foi uma mulher de fases - como a maioria das mulheres - e sua poesia , simples , profunda , cheia de simbolismo , retrata a beleza da sua alma . Gosto de quase toda obra de Cecília Meireles, mas especialmente dessas duas poesias...
Lua adversa
Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...
ooOoo
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmã das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei.
Não sei se fico , ou passo.
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei.
Não sei se fico , ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei muda:
- mais nada.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei muda:
- mais nada.
ooOoo
Cecília por ela mesma
"Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno. (…) Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou o sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade. (…) Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano.'' ( trecho de um escrito de Cecília Meireles) . Fontes de pesquisa e da foto aqui e aqui Fonte da imagem janela aqui ooOoo Paulo A. Teixeira ( do blog Alma Carioca ) , gostou do post e o publicou no "Alma Carioca " . Veja aqui |
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